quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Ensaio Rorschach, psicodiagnóstico e psicopatologia


Para o corpo de Berenice
Ou o coração Wall Street
Para o último tempo
Ou a primeira dose de tóxico
Para dentro de si
Ou para todos
Para dentro de si
Ou para todos
Pra sempre todos emigram.
(Alberto da Cunha Melo, 2001)


É frequente que, em face de uma dor ou grande angústia, nossa primeira tentativa de enfrentá-la aconteça numa visita ao médico. Acostumados como estamos com esta rotina, procuramos o doutor e tentamos relatar-lhe com o maior detalhamento possível tudo aquilo que consideramos sintomático, indicial, causal, enfim, importante. O doutor nos olhará por cima de suas grossas lentes, auscultará nosso coração e nos recomendará uma série de exames. Caso a dor esteja relacionada a um problema banal, podemos ter a sorte de sair do consultório com um diagnóstico e um receituário, em poucos minutos. Aliviados, buscamos então o farmacêutico e voltamos para casa com a sensação de que a angústia irá embora. Em grande parte dos casos, ela realmente se aplaca (ao menos em relação a este problema específico) e podemos continuar a tocar a vida. A gripe ou o pé quebrado nos incomodará ainda por um tempo, mas logo isto será superado. Talvez carregaremos uma cicatriz que servirá de lembrança para usarmos precauções e aprendemos com nossos erros. Somos mais fortes agora.

Em alguns momentos da vida, no entanto, a dor vivenciada é de outra sorte. Pode ser que a simples descrição de sintomas indiciais, desconfiança ou perda de apetite, não seja suficiente para que o doutor entenda e qualifique a angústia. O médico nos olha com espanto e, diante de nossa angústia, revisando os resultados de vários exames fisiológicos, nos diz: “você não tem nada”. A visita ao consultório muito pouco aplaca a angústia. Martins (2005) lembra que o paciente clínico, em sua formulação queixosa, reconhece explicitamente a importância de eventos encobertos, não somente encobertos pela pele ou pela camada de seus músculos, mas de algo ainda mais profundo. Ao dizer que o médico, os pais ou a sociedade não entendem o que ele sente, o indivíduo angustiado reclama a qualificação de fenômenos realmente invisíveis.
Nos manuais de psiquiatria, há o repetido enfoque no sintoma psíquico como perda de funcionamento, mal-estar, desadaptação. Ora, a adaptação é ligada à ideia de uma realidade empiricamente verificável. Se ao psiquiatra é possível dizer que, de fato, há uma realidade lá fora, a conclusão lógica é que o indivíduo deverá dispor de recursos cá dentro para adaptar-se a ela. Do ponto de vista das ciências naturais, no melhor viés positivista, a norma é obtida a partir de experimentações empíricas da natureza, é marca da regularidade dos fatos e fenômenos investigados. A ciência médica diz que dor no peito indica problemas cardiovasculares. Investigadas as causas e efeitos, por meio dos instrumentos adequados, se pode planejar a intervenção que trará alívio e saúde.

No entanto, quando a dor no peito é por conta de um coração partido, a metáfora corporificada não pode ser investigada pela instrumentação médica tradicional. É necessário ir além, pois a causa dessa dor é invisível.

A medicina tradicional, ciência natural por excelência, adota critérios de normalidade que, no mais das vezes, remetem dados normativos, estatísticos. A identificação de síndromes, por exemplo, é fundada na frequência estatisticamente relevante do aparecimento dos mesmos sintomas em condições semelhantes e em um número significativo de casos. Contudo, em medicina “mental”, a adoção de critérios estatísticos puros é enganosa. Isto porque a relevância estatística de um sintoma ou grupo de sintomas é um critério lógico para a descrição de normalidade ou adaptação. Estes critérios lógicos dirigem o pensamento do médico em na realização de um julgamento diagnóstico, terapêutico.

A norma para comportamentos e modos de vida, para emoções e formação de pensamento, todavia, não pode ser aplicada da mesma maneira que a norma para os compostos da estrutura óssea. Quando a queixa está relacionada a fenômenos internos, invisíveis, a aplicação puramente lógica da norma implica o caráter ideológico e narcísico de quem fará o julgamento. Martins (2005) salienta que este fazer “é também largamente conhecido como um critério autoritário e narcísico. Julgar o outro a partir de si mesmo não deixa de ser uma insistente projeção de si mesmo sobre os outros” (p. 104). A norma aproxima-se da lei e adquire uma conotação moral facilmente detectável.

A medicina tradicional ainda olha para o louco com estupefato. Seu sintoma, sua angústia, indica um oposicionismo que afronta a realidade tal como o cientista positivista a concebe: como uma realidade dada, comum e compartilhada. Aquele que se opõe a ela o faz por perceber uma realidade social injusta e a necessária alteração de seus ditames. Ele precisará, no entanto, da proteção do manto da história para se tornar um grande homem. Os santos maiores são comumente denominados os “loucos de Deus”, em uma radicalidade transformadora. Contudo, esses “loucos” não vivenciam, necessariamente, desintegração ou perda de funcionamento. São, sim, desadaptados e podem vivenciar muito mal-estar. No entanto, não estão doentes, por mais não-normais pareçam ser.

Algo semelhante ocorre com pessoas em crise. Ao procurar pela primeira vez o consultório do médico, foram mobilizadas por um forte estranhamento, a sensação avassaladora que, de fato, há algo errado. Estando algo errado, estranho demais, lhes advém a angústia como o impulso em face da urgente necessidade de mudança. De fato, a radicalidade e a extrema dor que comumente acompanham os estados de crise não são fáceis de entender. Ao ouvir o discurso estranho da pessoa em crise, “surtada”, a família, o médico e o seio social mais imediato realmente “não sabem” como ela se sente. O reducionismo costumeiro faz com que seu sofrimento seja identificado como uma doença. Há algo errado dentro do sujeito que sofre. O uso indiscriminado de medicação psiquiátrica pode estar associado à necessidade de embotar grande parte da vivência afetiva na crise. Este procedimento responde a uma dupla justificativa: a hipótese de organicidade da “doença mental” em vias de se instalar e a necessidade de controle de comportamentos potencialmente danosos para o sujeito e para seu meio.

O paciente que “não sabe (será?), mas sente” e o médico que “não sente, mas (em tese) sabe”.

A tentativa feita pela psiquiatria é de descrever e compreender o fenômeno psíquico a partir do mesmo olhar da medicina somática. A esperança é de que, quando os avanços tecnológicos o permitirem, a descrição sintomatológica das síndromes “mentais” encontrará sua etiologia fisiológica, numa determinante finalmente neuroanatômica. A “alma” estará localizada em sua morada final: o sistema nervoso.

Numa reflexão epistemológica, Gaston Bachelard questiona o conhecimento do real pelo cientista moderno (1978). Se o conhecimento do real, pelo psiquiatra moderno, toma a dupla rubrica do pitoresco e do compreensível no louco, o sentido epistemológico psiquiátrico vai do racional ao real e a aplicação de seu método científico é essencialmente realizante.  Falar de um quadro nosológico em um instante da experiência humana é entregar-se à escolha de um estado, entre uma infinidade de outras escolhas aparentemente arbitrárias. Se o paciente não responde, se ele se cala, o psiquiatra poderá conhecer que ele não fala e reconhecer que ele entrou em carreira psicótica. “Mas reconhecer não é conhecer. Facilmente se reconhece o que não se conhece” (Bachelard, 1978, p. 145).

As escolhas do psiquiatra são aparentemente arbitrárias. Aparentemente, porque o cientista psiquiátrico há de escolher as variáveis segundo critérios ancorados em sua prática. Interesses políticos, econômicos e sociais estão envolvidos na própria “escolha” do positivismo como referencial de ciência. As variáveis são hierarquizadas segundo sua possibilidade de controle, sua previsibilidade e em que medida os resultados podem ser replicados. Um cientista normal, fora de uma crise ou revolução epistemológica, não é crítico do paradigma em que trabalha (Chalmers, 1993).  Ele faz uso de categorias, classificações nosográficas, que não necessariamente existem. De fato, elas foram tornadas reais pela aplicação do raciocínio científico e pelo reconhecimento da psiquiatria.

Michel Foucault (1975, 1978) questiona o posicionamento da psiquiatria tradicional. Ele argumenta que os modernos perderam o contato puro com a loucura. Esta aparece como um monólogo da razão, por mais que as duas tenham origem ontológica diferente. A experiência da loucura, ao contrário, se relaciona a partir da determinação social. Em sua investigação sobre a transformação histórica do trato e da experiência da loucura, da excentricidade ao silenciamento, Foucault pontua que a loucura se torna o contraponto da razão, se torna desrazão. Com a psiquiatria, se a loucura é doença, a razão é saúde. O anormal preenche os critérios da psiquiatria, os quais são classificações construídas no seio social. Para os modernos, o discurso do louco é uma alteridade radical e inacessível, a qual somente tem como referência de acesso a classificação científica.

Para ele (1975), o manual diagnóstico dos transtornos mentais tenta, com grande esforço, aplicar os mesmos conhecimentos da medicina somática ao que se entendeu por doença mental. A psiquiatria estabelece um paralelismo abstrato entre as duas formas de adoecimento, mental e físico. Neste processo, se perde a noção que este paralelo, esta simetria entre o somático e o psíquico, entre o corpo e a mente, é uma metáfora. O psiquiatra tradicional toma a metáfora da “doença mental” na literalidade, a partir da perspectiva científica positivista, que fundou a medicina moderna. Comparará os sintomas de seu paciente à norma, poderá prescrever a seu paciente o receituário dos psicotrópicos, mas ainda não qualificará seus eventos internos. Mas este trabalho reducionista não abarcará a complexidade da loucura, uma vez que a psicologia da personalidade não ofereceu à psiquiatria a mesma contribuição que a fisiologia forneceu para a medicina somática.

Thomas Szasz (1960, 1979) critica a “verdade mentirosa” (lying truth) da psiquiatria. Para ele, a história da psiquiatria é perpassada por construtos falaciosos e o principal deles é o próprio termo doença mental. Ele aponta a confusão epistemológica presente no dualismo simétrico entre sintomas mental e físico na metaforização do cuidado médico ao sofrimento psíquico. A noção de sintoma mental é intrinsecamente relacionada ao contexto social em que ele é fabricado, dado que rotular a fala de uma pessoa como um sintoma mental envolve a atribuição do julgamento do médico, a comparação entre as ideias e crenças do referido “paciente” e as do observador, ambos inseridos em uma cultura e numa história.

O que o psiquiatra considera como doença mental são comunicações, expressão de ideias quiçá inaceitáveis, organizadas em uma fala não usual, incomum. A categorização psiquiátrica refere a eventos privados, sociopsicológicos, a respeito dos quais o observador (quem faz o diagnóstico) também forma compromisso. Neste sentido, Szasz aponta para a especificidade ética necessária na reflexão da psiquiatria sobre suas próprias práticas, particularmente quando é envolvida a dimensão coercitiva.

A partir das classificações sindrômicas dos comportamentos, a psiquiatria tradicional não faz senão aumentar o fosso social existente entre normais e anormais, quando a única diferença entre eles é a convencionalidade das metáforas utilizadas em sociedade. Este raciocínio tautológico (é doido porque age feito doido) torna difícil a distinção de etiologia e semiologia. Cada sutileza no comportamento do paciente ganha um novo título, uma taxonomia sígnica que aparentemente refere à realidade, julgada no saber médico da época e a partir de ordens políticas imperantes as mais diversas. A palavra passa pela assepsia da semiologia clínica, a desconfiança e a angústia viram sintomas possivelmente neuronais e a prática coercitiva da psiquiatria demove o ser humano diferente, não-normativo, de sua linguagem e humanidade.

Ileno Costa (2003) argumenta, com Szasz, que a perspectiva médica atrela a loucura a um absurdo lógico, pertencente tão somente ao indivíduo doente e que demanda uma resposta da sociedade. Ao isolar a doença mental, o psiquiatra não identificou apenas mais um tipo de doença, mas justificou a prática estabelecida de confinar loucos mediante a hospitalização compulsória. Uma vez reconhecida a doença, a institucionalização deve ser decidida. Por óbvio, esta decisão não cabe ao sujeito “doente mental”. O reconhecimento da doença, desde o início, foi um ato coercitivo.

Em Psicopathologia I – Prolegômenos (2005), Francisco Martins reabre o estudo da psicopatologia, em uma problematização que foi esquecida e empobrecida por soluções tranquilizadoras, comuns à modernidade, quando a avidez se direciona à posse de princípios que afastem a dúvida e o desespero. Sua obra busca tudo aquilo que tem facticidade como elemento essencial da psicopatologia. O autor qualifica o pathos, com Heidegger, como manifestação de uma realidade existencial, “um modo de ser momentâneo, duradouro ou permanente, carregado de subjetividade e capaz de comunicação intersubjetiva” (p. 37). De fato, ao traduzir pathos como disposição afetiva fundamental, a psicopathologia permite a consideração da loucura como um destino possível da experiência humana. O pathos carrega, ao mesmo tempo, a possibilidade de perda de harmonia e as formas mais sublimadas da existência.

Costa (2010a) salienta que o sofrimento psíquico, alvo da classificação psiquiátrica, é experiência de angústia, sempre presente na vivência humana. Este autor refere à ambiguidade e aos vários sentidos presentes nas manifestações do que é o sofrimento psíquico, que perpassam valores culturais, compreensões filosóficas e éticas do que é próprio do ser humano. Para ele, o discurso médico deve passar pela crítica de sua visão do que é signo sintomatológico. A palavra louca, diferente da febre, é portadora de sentido afetivo e comunica, associa interlocutores. Sempre presente nas construções e relações humanas, a desorganização de natureza páthica não é necessariamente negativa ou paralisante. Chico Science, poeta e compositor pernambucano, o refere de maneira contundente ao afirmar “que eu desorganizando, posso me organizar/ que eu me organizando, posso desorganizar” (1994).

Hermann Rorschach, em seu experimento de interpretação de formas fortuitas (1921/1967), elaborou os princípios de uma técnica de psicodiagnóstico que ia além da anamnese sintomática e o agrupamento sindrômico. Ao apresentar as manchas de tinta aos pacientes, ele pôde acessar um funcionamento interno que, de alguma maneira, estava relacionado aos sintomas apresentados. O obsessivo, com suas ideias fixas e seus rituais rígidos, apresentava muitas cinestesias e poucas cores, em um estilo de vivência introversivo, dominado pelo pensamento e desajeitado para as relações interpessoais. A prova das manchas de tinta não indica “o que ele experimenta, mas como ele experimenta. Internamente conhecemos grande parte das qualidades e das disposições, tanto de natureza associativa como afetiva ou ainda de natureza mista, com as quais o examinado se mantém na vida” (p. 90, grifos do autor). Mais ainda, Rorschach, a partir de seu experimento e, certamente também da influência da psicanálise, entende que “somente o impulso transforma os ‘momentos’ disposicionais em tendências ativas” (p. 91).

Ao longo de seu texto, todas as vezes que ambicionou descrever quais seriam as características normais ou ideais de um indivíduo, descobria a impossibilidade de uma recomendação geral. Questões culturais, étnicas, raciais, relacionadas à profissão e constituição social do indivíduo, demandariam ajustes. O que é problemático para uns muitas vezes possibilitava a qualidade específica de uma pessoa. Assim, uma pessoa normal idealizada seria alguém “coartado”, ou seja, desprovido dos recursos de enfrentamento facilmente evocados por obsessivos, histéricos ou psicóticos e, ainda assim, profundamente afetada pelo sofrimento.
Segundo John Exner (2003), o Rorschach dá maior ênfase à personalidade do indivíduo, em vez de sistematizar os comportamentos. Este tipo de informações vai além do enfoque sindrômico na sintomatologia e etiologia. É fornecido um recorte atual das condições psíquicas e relacionais do indivíduo e fundamenta o psicodiagnóstico profundo e complexo, consistente com a visão da psicopatologia crítica. Além disto, a própria natureza do método leva a pessoa a interpretar a mancha a partir de seu próprio arcabouço de recursos e demandas. Assim, ela é levada a uma situação de resolução de problemas ambíguos, dos mais simples aos mais complexos, sempre ligado à sua própria integridade pessoal, a sua história pessoal e a seu padrão de relacionamentos (Yazigi & Gazire, 2002).

O psicólogo dispõe de ferramentas várias, para além das utilizadas pela psiquiatria tradicional. Dentre elas, as técnicas projetivas, como o método de Rorschach, podem auxiliar na construção de um psicodiagnóstico que seja da especificidade do psicólogo. Tais instrumentos permitem que os eventos invisíveis sejam qualificados. Esta qualificação orienta o olhar do clínico para algo além dos comportamentos, para além da superfície. Mesmo sem oferecer grandes garantias, as contribuições da psicanálise permitem ao psicólogo considerar a causalidade psíquica como uma possibilidade da loucura. E que a loucura também é busca de saúde. O paranoico não deseja, em sua queixa, se livrar da desconfiança que ele tem do perseguidor. A desconfiança é o que o protege, garante minimamente sua vida. Ele quer é se ver livre do perseguidor. Para se tornar um “tu” verdadeiro, interlocutor do sintoma, da personalidade, do discurso, do ser louco, o psicólogo há de não mais se unir a “eles”. Ele deve virar algo parecido com o “eu” louco: um humano, afinal.



REFERÊNCIAS

Bachelard, G. (1978). A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural.
Chalmers, A. F. (1993). O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense.
Chico Science e Nação Zumbi (1994). Da Lama ao Caos. São Paulo: Chaos/ Sony Music.
Costa, I. I. (2003). Da Fala ao Sofrimento Psíquico Grave: Ensaios acerca da Linguagem Ordinária e a Clínica Familiar da Esquizofrenia. Brasília: ABRAFIPP.
_________. (2010a). Crises psíquicas “do tipo psicótico”: distanciando e diferenciando sofrimento psíquico grave de “psicose”. In: Costa, I. I. (Org.). Da Psicose aos Sofrimentos Psíquicos Graves: Caminhos para uma Abordagem Complexa (pp. 57-63). Brasília: Kako Editora.
Exner, J. E. (2003). The Rorschach: A Comprehensive System. Hoboken, HJ: John Wiley & Sons.
Foucault, M. (1975). Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
__________. (1978). História da loucura. São Paulo: Perspectiva.
Martins, F. (2005). Psicopathologia I – Prolegômenos. Belo Horizonte: PUC Minas.
Melo, A. C. (2001). Canto dos Emigrantes. In: Pinto, J. N. (Org.) (2001). Os Cem Maiores Poetas Brasileiros do Século. São Paulo: Editorial.
Rorschach, H. (1921/1967). Psicodiagnóstico. São Paulo: Mestre Jou.
Szasz, T. (1960). The myth of mental illness. The American Psychologist, 15, 113–118.
______. (1979). The lying truths of psychiatry. Journal of Libertarian Studies, 3(2), 121-139.
Yazigi, L. & Gazire, P. (2002). Avaliação cognitiva e Rorschach. Psico-USP, 7(1), 109-112.

Psicodiagnóstico e Psicopatia na Contemporaneidade


A reforma psiquiátrica ainda não chegou aos presídios. Ali a força parece ser outra. Ali os “loucos” são descritos como criminosos perigosos e irrecuperáveis e não simplesmente uns coitados doentes que se encaminham à demência, que nada sabem e nada podem. Ao contrário, o psicodiagnóstico inclui características notadamente lúcidas, deliberadas e longe da descrição de um incapaz ou alienado, como o esquizofrênico é frequentemente descrito. O psicopata, ao contrário, potencialmente tudo sabe e tudo pode.

Respostas mágicas, prontas, finais, inabaláveis e absolutas parecem mais reações ao medo do que construções científicas. O século XXI, ainda no início, já possui em si o vislumbre de que a modernidade não atingirá seu objetivo dourado: alcançar a verdade final sobre a natureza e sobre o ser humano. Ao contrário, um pensamento mais radical pode afirmar que jamais sequer fomos modernos (Latour, 1994) e que o pós, anti ou neomodernismo, a contemporaneidade, deverá sempre se confrontar com o seu limite mais assustador: não há garantias.

Grande é a transformação da filosofia da ciência, da psicologia e da psiquiatria em decorrência dos últimos desenvolvimentos filosóficos, políticos e sociais. A fenomenologia, a declaração dos direitos humanos, a epistemologia da subjetividade, a reforma psiquiátrica, tudo se encaminhou para a denúncia dos saberes como consolidadores de discursos e práticas excludentes, violentas. A antipsiquiatria apontou os problemas da metateoria biológica, reducionista e determinista que fundamentava a nosografia clássica. Teorias recentes denunciaram o paralelo absurdo desenvolvido entre sintoma mental e físico e também pôs em evidência a necessidade de considerar o ser humano como um inteiro, integrado, determinando e determinante de seu meio, seus micro e macrossistemas. É estranho ver como a mesma ciência, a psiquiatria, parece ter tido tão poucas transformações no contexto da criminologia, local onde produziu tantos saberes que subsidiam tantas práticas. Na interseção entre os saberes médico-psiquiátricos e jurídicos, a reforma psiquiátrica parece não ter chegado.

A psicologia, ciência moderna, defrontou-se com sua contradição básica: aplicar ao ser humano os critérios e postulados utilizados nas ciências naturais, ao mesmo tempo em que, moderna, declara o homem e a natureza coisas essencialmente distintas.
A ideia de uma precisão objetiva e quase matemática no domínio das ciências humanas não é mais conveniente se o próprio homem não é mais da ordem da natureza. Portanto, é a uma renovação total que a psicologia obrigou a si própria no curso de sua história; ao descobrir um novo status do homem, ela se impôs, como ciência, um novo estilo (Foucault apud Yamada, 2009).
O nascimento da criminologia como o estudo sobre o autor do crime trouxe a psicopatologia para a criminologia. O crime seria um "fenômeno como um dado ontológico preconstituído à reação social e ao direito penal" (ibid., p.37).

O interesse na metateoria positivista e na teoria biológica do comportamento constitui a psicopatologia como a ciênica que valida o discurso sobre o criminoso e as práticas adotadas sobre ele. Há, com o nascimento da escola degeneracionista da psiquiatria, a combinação entre norma e repressão: mais do que explicar o que é o criminoso, a psicopatologia legitima o que a justiça faz com ele.

Mais do que uma violação à lei, o crime passa a ser a manifestação da personalidade do criminoso. O criminoso é enlouquecido como uma forma de poder violenta sobre ele.

Um psicopata assim diagnosticado pode ser identificado como "um inimigo irremediável para as pessoas e a separação permanente da comunidade pela via da prisão parece ser a única alternativa prudente" (Morana et al apud Yamada, 2009). É escandalosa a comparação possível com a hospitalização prolongada do esquizofrênico, à exceção de que, com os psicopatas, não há sequer a promessa não cumprida de tratamento psi.

Demanda de mudanças no processo de psicodiagnóstico: retomada de critérios psicométricos seguros, viabilidade científica definitiva do conceito e identificação da psicopatia. A qual tipo de relações de poder o desenvolvimento deste saber está vinculado?
Para Latour não há divisão entre ciência de um lado e política do outro. Os ‘achados’ científicos e a qualidade da referência de uma ciência vêm da sua capacidade de atrair interlocutores, da habilidade de interessar e convencer os outros (ibid., p. 48).
Ao contrário dos hospícios, no entanto, as prisões respondem de maneira reacionária contra os ideais da reforma psiquiátrica. A ciência como ferramenta de verdade indubitável pode ser politicamente importante na área da saúde mental. Parece-me que se trata antes da manutenção ou renovação de ideais modernos que estavam aí desde o final do século XIX, apenas aguardando pela aparelhagem técnica adequada. A modernidade trouxe esperanças finais de controle, clareza e descrição de leis gerais, universais. Seja lá o que as ressonâncias magnéticas digam, quem lê é o mesmo cientista moderno cheio de jargões incompreensíveis, na construção de um saber que responde na relação de poder e nas demandas políticas da sociedade. É o mesmo cientista que, mais do que saber sua ciência, deve saber "vender" sua ciência. O sistema jurídico-criminal e penal parece estar mais interessado em comprar a ciência que forneça garantias a suas práticas. É a manutenção da hegemonia, o silenciamento dos excluídos e a política do medo, todas juntas, contra uma população numérica e empaticamente minoritária: os criminosos. A relação da justiça com o criminoso é de um poder violento e soberano, que implica à ciência um papel fundamental de onisciência e onipotência. Ao criminoso é dada a inversão da frase bíblica: se Deus é contra vós, quem será por vós?

A partir da metade do século XVIII emerge uma série de controles regulares que incidirão também no corpo, por meio de intervenções com base nos processos biológicos no nível da saúde e da duração da vida - uma biopolítica da população. (...) Algumas formas de controle e mecanismos de normalização operam através da figura do criminoso e do desviante e se inserem na noção de biopoder proposta por Foucault e seus dois braços: medicalização e judicialização (ibid., p. 48).

Os homicidas encarcerados são amostra da população de homicidas. Ao investigar e descrever os assassinos presidiários, ou seja, aqueles criminosos que tiveram julgamento e pena por seu crime, se descreve como funcionam as pessoas que foram "pegas", ou seja, que foram denunciadas, julgadas e punidas. Como estipular leis gerais de funcionamento sobre o "psicopata" com dados de uma amostra tão ínfima da população?

O conceito de psicopata é formulado à maneira das ciências naturais em conjunção com bases morais óbvias, o próprio conceito "testilha com a realidade do mundo fenomênico" (Thompson apud Yamada, 2009, p. 48). É impossível conceituar o crime como fenômeno natural. Este é um fenômeno irredutível a operações de descrição, medição, classificação e experimentação. Mas o criminoso, sim, o é, através da psicologia positivista.
No mais lato sentido, pode-se afirmar que todos os crimes são crimes políticos, uma vez que todas as proibições com sanções penais representam a defesa de um dado sistema de valores, ou de moral, no qual o poder social prevalente acredita (Schaver apud Yamada, 2009, p. 50).


Referências
Latour, B. (1994). Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: 34 Literatura.
Rauter, C. (2003). Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.
Yamada, L. T. (2009). O horror e o grotesco na psicologia - a avaliação da psicopatia através da escala Hare PCL-R (Psychopathy Checklist Revised). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia.