quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Psicodiagnóstico e Psicopatia na Contemporaneidade


A reforma psiquiátrica ainda não chegou aos presídios. Ali a força parece ser outra. Ali os “loucos” são descritos como criminosos perigosos e irrecuperáveis e não simplesmente uns coitados doentes que se encaminham à demência, que nada sabem e nada podem. Ao contrário, o psicodiagnóstico inclui características notadamente lúcidas, deliberadas e longe da descrição de um incapaz ou alienado, como o esquizofrênico é frequentemente descrito. O psicopata, ao contrário, potencialmente tudo sabe e tudo pode.

Respostas mágicas, prontas, finais, inabaláveis e absolutas parecem mais reações ao medo do que construções científicas. O século XXI, ainda no início, já possui em si o vislumbre de que a modernidade não atingirá seu objetivo dourado: alcançar a verdade final sobre a natureza e sobre o ser humano. Ao contrário, um pensamento mais radical pode afirmar que jamais sequer fomos modernos (Latour, 1994) e que o pós, anti ou neomodernismo, a contemporaneidade, deverá sempre se confrontar com o seu limite mais assustador: não há garantias.

Grande é a transformação da filosofia da ciência, da psicologia e da psiquiatria em decorrência dos últimos desenvolvimentos filosóficos, políticos e sociais. A fenomenologia, a declaração dos direitos humanos, a epistemologia da subjetividade, a reforma psiquiátrica, tudo se encaminhou para a denúncia dos saberes como consolidadores de discursos e práticas excludentes, violentas. A antipsiquiatria apontou os problemas da metateoria biológica, reducionista e determinista que fundamentava a nosografia clássica. Teorias recentes denunciaram o paralelo absurdo desenvolvido entre sintoma mental e físico e também pôs em evidência a necessidade de considerar o ser humano como um inteiro, integrado, determinando e determinante de seu meio, seus micro e macrossistemas. É estranho ver como a mesma ciência, a psiquiatria, parece ter tido tão poucas transformações no contexto da criminologia, local onde produziu tantos saberes que subsidiam tantas práticas. Na interseção entre os saberes médico-psiquiátricos e jurídicos, a reforma psiquiátrica parece não ter chegado.

A psicologia, ciência moderna, defrontou-se com sua contradição básica: aplicar ao ser humano os critérios e postulados utilizados nas ciências naturais, ao mesmo tempo em que, moderna, declara o homem e a natureza coisas essencialmente distintas.
A ideia de uma precisão objetiva e quase matemática no domínio das ciências humanas não é mais conveniente se o próprio homem não é mais da ordem da natureza. Portanto, é a uma renovação total que a psicologia obrigou a si própria no curso de sua história; ao descobrir um novo status do homem, ela se impôs, como ciência, um novo estilo (Foucault apud Yamada, 2009).
O nascimento da criminologia como o estudo sobre o autor do crime trouxe a psicopatologia para a criminologia. O crime seria um "fenômeno como um dado ontológico preconstituído à reação social e ao direito penal" (ibid., p.37).

O interesse na metateoria positivista e na teoria biológica do comportamento constitui a psicopatologia como a ciênica que valida o discurso sobre o criminoso e as práticas adotadas sobre ele. Há, com o nascimento da escola degeneracionista da psiquiatria, a combinação entre norma e repressão: mais do que explicar o que é o criminoso, a psicopatologia legitima o que a justiça faz com ele.

Mais do que uma violação à lei, o crime passa a ser a manifestação da personalidade do criminoso. O criminoso é enlouquecido como uma forma de poder violenta sobre ele.

Um psicopata assim diagnosticado pode ser identificado como "um inimigo irremediável para as pessoas e a separação permanente da comunidade pela via da prisão parece ser a única alternativa prudente" (Morana et al apud Yamada, 2009). É escandalosa a comparação possível com a hospitalização prolongada do esquizofrênico, à exceção de que, com os psicopatas, não há sequer a promessa não cumprida de tratamento psi.

Demanda de mudanças no processo de psicodiagnóstico: retomada de critérios psicométricos seguros, viabilidade científica definitiva do conceito e identificação da psicopatia. A qual tipo de relações de poder o desenvolvimento deste saber está vinculado?
Para Latour não há divisão entre ciência de um lado e política do outro. Os ‘achados’ científicos e a qualidade da referência de uma ciência vêm da sua capacidade de atrair interlocutores, da habilidade de interessar e convencer os outros (ibid., p. 48).
Ao contrário dos hospícios, no entanto, as prisões respondem de maneira reacionária contra os ideais da reforma psiquiátrica. A ciência como ferramenta de verdade indubitável pode ser politicamente importante na área da saúde mental. Parece-me que se trata antes da manutenção ou renovação de ideais modernos que estavam aí desde o final do século XIX, apenas aguardando pela aparelhagem técnica adequada. A modernidade trouxe esperanças finais de controle, clareza e descrição de leis gerais, universais. Seja lá o que as ressonâncias magnéticas digam, quem lê é o mesmo cientista moderno cheio de jargões incompreensíveis, na construção de um saber que responde na relação de poder e nas demandas políticas da sociedade. É o mesmo cientista que, mais do que saber sua ciência, deve saber "vender" sua ciência. O sistema jurídico-criminal e penal parece estar mais interessado em comprar a ciência que forneça garantias a suas práticas. É a manutenção da hegemonia, o silenciamento dos excluídos e a política do medo, todas juntas, contra uma população numérica e empaticamente minoritária: os criminosos. A relação da justiça com o criminoso é de um poder violento e soberano, que implica à ciência um papel fundamental de onisciência e onipotência. Ao criminoso é dada a inversão da frase bíblica: se Deus é contra vós, quem será por vós?

A partir da metade do século XVIII emerge uma série de controles regulares que incidirão também no corpo, por meio de intervenções com base nos processos biológicos no nível da saúde e da duração da vida - uma biopolítica da população. (...) Algumas formas de controle e mecanismos de normalização operam através da figura do criminoso e do desviante e se inserem na noção de biopoder proposta por Foucault e seus dois braços: medicalização e judicialização (ibid., p. 48).

Os homicidas encarcerados são amostra da população de homicidas. Ao investigar e descrever os assassinos presidiários, ou seja, aqueles criminosos que tiveram julgamento e pena por seu crime, se descreve como funcionam as pessoas que foram "pegas", ou seja, que foram denunciadas, julgadas e punidas. Como estipular leis gerais de funcionamento sobre o "psicopata" com dados de uma amostra tão ínfima da população?

O conceito de psicopata é formulado à maneira das ciências naturais em conjunção com bases morais óbvias, o próprio conceito "testilha com a realidade do mundo fenomênico" (Thompson apud Yamada, 2009, p. 48). É impossível conceituar o crime como fenômeno natural. Este é um fenômeno irredutível a operações de descrição, medição, classificação e experimentação. Mas o criminoso, sim, o é, através da psicologia positivista.
No mais lato sentido, pode-se afirmar que todos os crimes são crimes políticos, uma vez que todas as proibições com sanções penais representam a defesa de um dado sistema de valores, ou de moral, no qual o poder social prevalente acredita (Schaver apud Yamada, 2009, p. 50).


Referências
Latour, B. (1994). Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: 34 Literatura.
Rauter, C. (2003). Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.
Yamada, L. T. (2009). O horror e o grotesco na psicologia - a avaliação da psicopatia através da escala Hare PCL-R (Psychopathy Checklist Revised). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia.

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