sábado, 8 de outubro de 2011

Psiquiatria e psicose - Francisco Martins (2003)

Martins (2003) elabora uma investigação teórico clínica das síndromes psicopatológicas clássicas, a partir de uma crítica à psiquiatria tradicional e a visão médica reducionista. Em suas considerações sobre o que denominou de "as síndromes delirantes, alucinatórias e de desagregação do pensamento", perfaz breve histórico da forma como a psiquiatria, ou o saber médico, conceituou a psicose. O autor compara o reconhecimento do caráter simbólico atribuído às síndromes neuróticas com o trato diferenciado dado às psicoses. Diferentemente da histeria, da neurose obsessiva, dentre outras síndromes neuróticas, as psicoses foram tratadas, no âmbito médico, como síndromes demenciais. O termo demência precoce se referia às manifestações sintomatolígicas do que ficou conhecido como perda de contato com a realidade. A sintomatologia clássica das psicoses concerne à esfera do pensar, da linguagem, organizada a partir de dois fenômenos principais: a alucinação e o delírio, acompanhados de outros sintomas também ligados ao pensar e à linguagem.
Distinguem-se grandes síndromes em que a categorização se multiplica em inúmeros subtipos ao longo da história da psiquiatria. A grande diversidade em que se apresentam os sintomas e outras manifestações de distanciamento da realidade, estranhamento característico da psicose, reflete a complexidade envolvida no sofrimento psíquico. A tentativa feita pela psiquiatria é de descrever e compreender o fenômeno ps´quico a partir do mesmo olhar da medicina tradicional, anatomo-fisiológica. A esperança final é de que, quando os avanços tecnológicos o permitirem, a descrição sintomatológica das síndromes mentais encontre sua etiologia neuroanatômica determinante. Assim, procedimentos fisiológicos foram tomados para classificar e cuidar da loucura enquanto se espera as explicações neuroanatômicas redentoras.
A estranheza da linguagem psicótica seria, então expressão do acometimento mental (leia-se neuronal, cerebral) não determinado que acomete o paciente. A psiquiatria poderia teorizar a respeito de qual é a deterioração mental da psicose, por analogia aos processos demenciais. A cronificação e degeneração psíquica são marcas da consideração que a psiquiatria tem pela psicose e o processo classificatório "não fez senão aumentar o fosso existente entre os normais - os que utilizam as metáforas mais habituais, como diria Nietzsche - e os loucos que desviam através da excentricidade da norma" (p. 244). Este raciocínio tautológico torna siamesas a etiologia e a semiologia. O autor segue:
"Cada alteração ganha um novo nome, ou mais frequentemente um novo neologismo científico, que se torna signo da realidade aparente, julgada na ordem do saber médico da época, como fazendo parte de um quadro nosográfico específico. As palavras são, então, esvaziadas de sei poder imaginário, simbólico e pragmático" (p. 244).
A assepsia do discurso da loucura, realizada pela prática coercitiva da psiquiatria, demove o ser humano não-normativo de sua humanidade. A palavra louca, no entanto, é portadora de sentido e comunica, associa interlocutores. A medicina, no seu afã de sair do "infinito de signos interlocutivos e banais", na busca por signos patognomônicos nas doenças mentais", perde de vista que a saúde mental não se trata de órgãos silenciosos, nem promove a escuta do significado desenvolvido na enunciação do sintoma-palavra.

Martins, F. (2003). Psicopathologia II: Semiologia Clínica. Brasília: UnB/ABRAFIPP.

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