sábado, 1 de outubro de 2011

Considerações sobre o narcisismo e a psicose

O psicótico apresenta um padrão de escolha (relação) objetal narcísica. O outro é sustentáculo para o eu, pode ser seu ideal e portar as características com as quais o ego se identificará na medida em que puder investir libido no objeto identificatório idealizado. A perda do objeto na relação objetal narcísica significa a perda do sustentáculo do ego e pode trazer mais do que angústia de abandono ou de perda do objeto. Nestes casos, a perda do objeto significa angústia de aniquilamento do ego, o eu perde a si mesmo quando perde o objeto de identificação narcísica.

Metamorfose de narciso, Salvador Dali - ampliar 

Lembro do paciente que acolhi ontem, falando o tanto que a perda da mãe dele significava para ele a perda de si próprio. Esta perda é elaborada de diferentes formas, mas principalmente pela sensação de perda de controle, de ter feito um mal irreparável, de estar sob o controle perverso do outro, de ser diversas pessoas nos momentos em que ele não tem certeza de quem ele é. Está no meio de um ritual mágico, permeado por aspectos crueis e retaliadores, responsivos à ambivalência presente no investimento amoroso feito no objeto de identificação narcísica. O uso de drogas e a sensação de onipotência primitiva que perpassa os processos sublimatórios somente pode ocorrer mediante a sustentação do eu que  a relação objetal narcísica proporciona. Perder o sustentáculo oferecido pelo objeto narcísico impossibilita a expressão mais livre, já que o investimento libidinal não tem mais o objeto e o eu sobre o risco constante de aniquilamento. Toda a energia psíquica parece concentrada na busca por este objeto perdido, que é a busca do eu.

A estrutura da personalidade é contexto para o desenvolvimento psicopatológico. O uso de defesas psicóticas (narcísicas, na concepção freudiana) depende do tipo de relação objetal estabelecida e do tipo de angústia vivenciada no momento da perda do objeto. Esta escolha objetal pode ser predominante ou ocorrer somente no processo identificatório primitivo. Uma pessoa com sintomas psicóticos pode ser capaz de estabelecer relações objetais de apoio, de formular angústia de perda de objeto e de ter sintomas (defesas) neuróticos (de transferência). Uma psicose "instalada" é "a adaptação do ego à vivência psicótica em si (...), a expressão do funcionamento mental que passou por uma experiência de desorganização [do eu]" (Tenenbaum, 1999, p. 26).

A tela de Dali parece ilustrar as psiconeuroses narcísicas. Na melancolia, à esquerda, o investimento libidinal no outro é impossibilitado pela perda deste, e há reinvestimento da libido objetal no ego, pois "a sobra do objeto cai sobre o eu".
Na psicose, à direita, o outro é sustentáculo do eu, a elaboração do ego toma a metáfora na literalidade. A perda do outro, da relação objetal, cria uma angústia de aniquilamento, que impulsiona a geração de mecanismos de defesa primitivos, alucinações e delírios. Na realidade do psicótico, o objeto narcísico ainda existe com toda sua força e onipotência, retomado de forma distorcida possibilitada pelo Processo Primário de Pensar, a qual permite a força e onipotência do eu. Afinal, delirando eu sou "O GOSTOSO do universo" (Martins, 2004). "A potência do ato ilocucionário alcança sua performance máxima" (Martins, 2009, p. 86).


Referências


MARTINS, F. (2004). Os Psicopathos I - A Alucinação. Brasília: Laboratório de Psicopatologia e
Psicanálise, Universidade de Brasilia.
___________. (2009). Ensaio sobre os sintomas simbólicos – Da cabrita desvalida ao Senhor do Mundo. Brasília: Edunb-FINATEC.
TENENBAUM, D. (1999). Investigando psicanaliticamente as psicoses. Rio de Janeiro: Sette Letras.


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