terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A psicose na metapsicologia freudiana

Simanke, R. T. (2009). A formação da teoria freudiana das psicoses. São Paulo: Loyola, pp 225-247.

1º problema: As duas realidades

A castração é o protótipo de todo rompimento posterior com o mundo. A partir da formulação do complexo de Édipo, o questionamento: existiria, na psicose, um mecanismo equivalente à repressão?
Alucinação, narcisismo e mecanismo específico da psicose: influências na noção de "ruptura com a realidade".

Noção de realidade: a realidade psíquica não é a totalidade do que é subjetivo. Há um problema epistemológico na descrição da realidade psíquica, que é a comparação desta com a realidade material. Freud oferece ordem de realidade ao que é próprio do inconsciente: pensamentos intermitentes e de transição (o que é subjetivo, pensamentos voluntários, devaneios) não teriam realidade, embora sejam subjetivos. Ao contrário, desejos inconscientes em sua expressão última e verdadeira são uma forma particular de existência e mereceriam o estatuto de realidade psíquica, porquanto causam (ou seja, determinam) os eventos psíquicos.

Velho embate:
Interno x externo
Subjetivo x objetivo
Real x não real
Em que medida essas dimensões se interpolam e se interdeterminam?

Para Freud, a realidade psíquica é mais do que a subjetividade, mas não compreende, em absoluto, o objetivo e o externo. Ao discorrer sobre a aquisição psíquica, Freud descreve que o prazer se localiza no ego e o desprazer é projetado para fora. No artigo "A negativa" (1925), ele descreve a função do juízo, ou seja, a prova de realidade (questão central da psicose), como tarefa do ego-realidade final, o qual é derivado do ego-prazer inicial: algo é julgado como real se a representação puder ser encontrada na percepção. Podemos ver a confusão entre representação e percepção na alucinação e paranoia. O externo é julgado como algo fora do ego, mas não necessariamente ele estará fora do psíquico, o que deriva que a realidade psíquica não é somente interna.

Mais ainda, a realidade psíquica:
- não é somente individual (ou subjetiva),
- não é livre, como a imaginação,
- possui determinação externa, mas não se confunde com os elementos externos.

Pulsão sexual e a teoria da sedução
Laplanche e Pontalis: teoria da sedução generalizada. A pulsão sexual é inclulcada no bebê pela sedução do adulto (cuidado corporal erogeneizante);
Melanie Klein sugere que a pulsão sexual é totalmente endógena, os objetos sexuais são constituídos a partir da fantasia, extremamente precoce;
Freud devente posição intermediária: as pulsões têm sua fonte nas zonas erógenas, mas encontram seus objetos na realidade externa (que pode, inclusive, ser o corpo próprio).

Breuer: "os histéricos sofrem de reminiscências" - não quaisquer, mas um tipo especial de memória constitui o núcleo do trauma, o qual se manifestará a partir de associações e formações simbólicas. O núcleo, em si, não é elaborado, resiste a análise e é o ponto de inserção do mundo concreto no psiquismo, onde se situa a realidade psíquica. A memória é uma fantasia infantil e a cena primária é o momento do enengramento do psíquico pela ação da realidade externa. A fantasia é primária: elabora, assimila e está relacionada, ainda que apenas isomorficamente ou por meio de associações simbólicas, a um evento real. A fantasia, portanto, é a expressão da pulsão. O objeto da repressão primária (que retorna na repressão propriamente dita) é o primeiro representante psíquico da pulsão, este constitui o ponto de inserção da realidade externa no psiquismo.

Daí decorre que:
Os registros mnêmicos não verbais, inacessíveis à consciência, pertencem ao inconsciente, são o núcleo irredutível, resistem à interpretação e são reais.
Na alucinação, estratégia primária de realização de desejo, o sujeito vive em realidade psíquica. A perda da realidade na psicose é a perda da relação mediata com o inconsciente, onde há somente representações de coisa. Na psicose, decorrente da impossibilidade de diferenciar representações e percepções, a representação se torna coisa. A realidade psíquica parece um "nó heterogêneo", relativamente exógeno, pois o percebido, após virar traço mnêmico, está sujeito ao processo primário: está condenado à "inefabilidade qualitativa", já que o sujeito só recebe a quota energética daquilo que tem que processar. O externo só tem, na metapsicologia freudiana, o estatuto econômico/energético.

Com o abandono da teoria da sedução, Freud não desiste da determinação real e histórica das fantasias: busca, então, a determinação nos diversos âmbitos da produção cultural e subjetiva humana:
-mitologia,
-antropologia,
-filo e ontogenia.

Teoria do complexo de castração
Efeito traumático da ameaça de castração: ameaça à integridade narcísica. A psicose seria a recusa da castração e o retorno (fixação) no narcisismo. A ablação do falo é uma fantasia, assinala o lugar do sujeto em um mundo sexuado, com a diferença entre os sexos (e entre as gerações, na entrada no complexo de Édipo, muito tempo depois).
No narcisismo, a relação de objeto é de identificação, o objeto parental é idêntico ao ego (com as frustrações, o ego apela ao id: "me ame, eu sou tão parecido com ele...).

Diferença entre representação e percepção:
Só com a superação do narcisismo primário as noções de dentro e fora, eu e outro começam a fazer sentido. Na menina, a decepção fálica introduz ao Édipo e à captura do pai por desejo de um filho-falo. No menino, a mãe fálica era idêntica a ele e a descoberta da castração (dela) insere a criança no complexo - a ausência/inveja do pênis divide o mundo em dois conjuntos de seres irreconciliáveis. E o fato de esta diferença estar estritamente relacionada ao sexo e à reprodução faz desta questão, para a criança sexuada, essencialmente central e traumática. A castração se torna realidade da própria vida, universal.

Narcisismo
O narcisismo primário é a inserção do objeto na identificação primária, quando ego=objeto. A onipotência imaginária não dá limites para a satisfação do desejo. A alucinação é característica da psicose enquanto quadro de regressão ao narcisismo. A castração é todo limite imposto ao desejo pela realidade, significa ruptura da situação narcísica: é a resistência da realidade à satisfação do desejo. A passagem pelo Édipo permite evitar, em parte:
-a confrontação com a realidade da castração;
-a confrontação com a realidade da ferida narcísica que ela implica.

O incesto (interdito, proibição) resulta do sepultamento do Édipo e oferece objetos possíveis ao sujeito, ao mesmo tempo em que o distancia da castração. O tabu do incesto permite dizer que, se os sujeitos, femininos e masculinos, só se satisfazem parcialmente e com objetos algo inadequados, é por causa da interdição do incesto e não à diferença sexual real, que acaba com a fantasia narcísica. Isso porque a transgressão a uma proibição é, em tese, possível. A proteção contra a ameaça de castração é a repressão contra desejos incestuosos e a identificação (secundária) de parte do ego com as figuras parentais (Édipo direto+invertido=completo), um algo de conservação do narcisismo: SUPEREGO.

Narcisismo secundário da perversão ≠ psicose (modo da recusa).

No neurótico, o superego é porta-voz da ameaça de castração.
O conflito ego x superego na neurose substitui o arcaico conflito ego x realidade, próprio da psicose.

Em Eva, por exemplo, o registro narcísico mantido após o complexo de Édipo retorna com a "realidade material" de um outro (do filho), que é rejeitado. Na psicose, há a perturbação do vínculo do ego com a realidade pela recusa em dar inscrição psíquica à realidade da diferença sexual. Em muito se parece com a defesa perversa...

Verleugnung: fragilidade original da construção da realidade da diferença sexual devido à recusa de dar inscrição psíquica a um dos seus elementos mais fundamentais.

Desinvestimento do inconsciente: as representações de coisa são "percebidas" (perceber=recordar). O modo particular de defesa da psicose extingue (desinveste) sucessivamente as representações de coisa que assinalam o ponto de inserção da realidade insuportável (complexo de castração?). "É uma espécie de sangramento do investimento próprio desse sistema através da brecha deixada pela ausência de inscrição psíquica de uma realidade concreta tão decisiva como a castração" (p. 239).

A confrontação com essa realidade só produz desagregação (ameaça de castração --> ameaça de aniquilamento).

"Esboço de psicanálise": dificuldade demarcatória entre psicose, neurose e perversão (verleugnung?)

Lacan: Verwerfung - forclusion ~ forma mais drástica de rejeição da representação intolerável (alucinaçaõ, Neuropsicoses de defesa); recusa da castração em Homem dos Lobos. O que é foracluído no simbólico (cuja inscrição psíquica é recusada) retorna no real.

Laplanche e Pontalis (vocabulário): termos que denotam uma recusa em tomar conhecimento de algum conteúdo que não é repressão.

Schreber: conteúdo psíquico cancelado (aufgehoben) dentro e que ressurge desde fora, por projeção.

Fetichismo: duas séries psíquicas paralelas (cisão do ego), numa das quais a falta do pênis feminino estaria reconhecida (ambiguidade). Na psicose, a série com a falta do pênis está ausente. A ausência de um esquema de regulação edípico deixa o sujeito psicótico perplexo diante do surgimento de obstáculo à realização do desejo (alucinação). Na falta das representações de coisa, desinvestidas pela defesa psicótica, à realização de desejo, sempre regressiva, não resta alternativa senão a via alucinatória.
(A interpretação dos sonhos: o desejo inconsciente é o impulso psíquico para reinvestir as representações de coisa na falta do objeto).

Presença de alucinações em quadros clínicos que não a psicose. Na histeria, a invervação conversiva do aparato sensorial (daí também nossa postura de não chamar essas pessoas de psicóticas, que dirá esquizofrênicas, não importa quanto tempo durem as alucinações). Na psicose, contudo, o desinvestimento no inconsciente ocorre em cadeia e esvazia o sistema de sua excitação própria, até a constituição do delírio. Na histérica, a formação do sintoma é simbólico, a representação está reprimida (O inconsciente).

Alucinação verbal: despersonalização.
"O sujeito não tem mais a impressão de coincidir com sua palavra própria. Eis aí o germe da ilusão da palavra estrangeira" (Merleau-Ponty, 1949, p. 58).

Winnicott: o que importa é proteger o verdadeiro self.

O delírio passa a ser um esforço pra recuperar os vínculos perdidos com a realidade (tentativa de cura, remendos psíquicos).

As representações de palavra (veículo para o delírio) perderam o vínculo associativo (afetivo) com as representações de coisa, os instrumentos de mediação e prova de realidade realizados pelo ego, aniquiladas pelo desinvestimento psicótico e, por isto mesmo, a palavra é tomada como coisa (e investida pela quota de afeto livre?)

A possibilidade de uso da linguagem compartilhada (consciente) depende da reanimação dos traços mnêmicos. O delírio é pensar com palavras investidas de libido narcísica (daí decorre que o paranoico ama seu delírio como a si mesmo, onipotência do sintoma)

Decisão na relação eu-outro
-As instâncias psíquicas são sedimentos dos investimentos objetais primários abandonados
objeto da pulsão (parcial) --> falta --> objeto do desejo
A nova ação psíquica que leva do autoerotismo ao narcisismo é o início da diferenciação entre ego e id. No narcisismo, ego=objeto.
Narcisismo secundário: retorno a um modo arcaico de relação objetal.
Privado das referências que assinalam o limite da subjetividade, o psicótico só pode perceber sua palavra como proveniente da realidade externa (alucinação auditiva: regressão tópica, formal e temporal)

O psicótico freudiano parece virado ao avesso (inconsciente a céu aberto).

"A história do conceito de psicose em Freud é toda - ou quase toda - uma pré-história (p. 248)".

Discussões sobre a diferença entre a noção de psicose na
psicanálise x psiquiatria
Não estamos falando da mesma coisa... Postura epistemológica na construção da classificação psiquiátrica, um manual diagnóstico "ateórico" é impossível.




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