quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Os jogos psicóticos na família

Palazolli, Mara Selvini, Cirillo, S., Selvini, M. & Sorrentino, A. M. (1998). Os jogos psicóticos na família. São Paulo: Summus.

Uma escolha que se abre à família (não realmente livre, mas assim esclarecida pode ser também re-possuída de seus determinantes afetivos e sociais):
"vale a pena tentar, à espera de oferecer ao filho uma vida digna de ser vivida mas aceitando, concomitantemente, o risco de que o rapaz escolha, ao invés disso, morrer? Ou é preferível mantê-lo naquela vida miserável, dentro e fora de hospitais, mas, enfim, vivo?" (p. 81)


A que custo? No início, às prescrições invariáveis:
"Pode-se compreender como o desmoronamento de uma construção afetiva dolorosamente colocada de pé, dia após dia, como único refúgio às frustrações de uma vida conjugal desafortunada possa causar medo. E mais: renunciar por que motivo? Para sair por quatro horas com um cônjuje com quem já não se suporta mais nem mesmo a presença, sem saber o que falar com ele, expostos, sem poder fugir, a seus sarcasmos, seus silêncios, seus amuos? Tendo-se em vista o quê? A cura do outro filho? E quem garante essa cura, afinal de contas? O terapeuta? Mas a gente pode confiar nesse tal terapeuta?" (p .79).

O motivo porque guardar um segredo é inaceitável pode revelar o jogo familiar subsequente. Com a prescrição, é possível iniciar a interromper um jogo antes mesmo que ele se apresente por completo na sessão terapêutica.

Imbroglio: "processo interativo complexo que parece estruturar-se e evoluir em torno de uma tática comportamental especítica posta em rpática por um dos pais, caracterizada por ostentar como privilegiada uma relação diádica intergeracional (pai-filho) que, na realidade, não existe. O privilégio não é afetivamente autêntico, pois trata-se do instrumento de uma estratégia voltada contra alguém, em geral o outro genitor" (p. 92, grifos do autor).

O privilégio do filho por parte do(s) pai(s) em relação ao qual a traição desencadeia reações sintomáticas de amante traído. De fato, o privilégio somente existe enquanto ferramenta contra alguém. Uma recompensa é alusiva ao filho privilegiado, mas sabemos que esta não haverá, porque o amor especial do pai só existe enquanto raiva da mãe (ou vice-versa). Tratam-se de "crenças" aprendidas a partir do convívio, são questões tácitas e não regras explicitadas.

"Convicção da ilicitude e consciência da conivência, somadas à desconfiança quanto à lealdade do ex-aliado, condenariam também ao silêncio, por si só, quem se sentisse traído, levando-o a fazer uma reivindicação encoberta" (p. 95, grifos meus) - formação do sintoma.

O Imbroglio na Esquizofrenia

Jogos sujos
"Esbarramos freqüentemente em jogos ou manobras habilmente dissimulados que, no jargão de nossa equipe, habituamo-nos a chamar de jogos sujos. (...) Esses meios nos pareciam totalmente sujos porque o seu objetivo, tanto quanto conseguíamos entender, era mascarado e negado, para poder ser atingido mais facilmente. (...) A nossa hipótese era a de que o comportamento psicótico do paciente propriamente dito esteve em conexão direta com o jogo sujo. Repetidamente, estivemos perto de poder confirmar esta hipótese. Por exemplo, a explosão do comportamento psicótico havia ocorrido quando o paciente em questão se sentira traído ou, pelo menos, enrolado exatamente por aquele, dentre os dois pais, como o qual parecia sentir mais afinidade" (p. 103, grifos do autor).



O imbroglio acontece quando um dos pais entrega um 7 de copas ao filho e diz, sem palavras: "pede truco". Este sabe que o outro pai tem um 4 de paus. Mas sobre isso ele não diz nada. O outro pai também nunca diz se cai, corre ou dobra. A situação familiar fica insustentável, numa expectativa enlouquecedora. A coisa fica ainda pior se houver um outro filho que parece dizer: "esse negócio de truco não existe: é coisa da sua cabeça. Além disso, eu tenho mais o que fazer da vida".

"Os modos relacionais dessas famílias de jogadores, afeitas às contorções tático-manipulativas, parecem dominadas por uma advertência principal, que é mais ou menos o seguinte: quando se trata de afeto, o oportuno é nunca mostrar as coisas como elas são; é melhor mostrar exatamente o contrário" (p. 108).

"Do ponto de vista da adaptação é, portanto, importante que esse discurso seja desenvolvido mediante técnicas relativamente inconscientes e só parcialmente sujeitas a um controle voluntário.
Mas isso escancara a porta, para nós, a um problema de complexidade inimaginável. Como pode ser bem-sucedida e aonde pode levar a falsificação voluntária de uma relação em um jogo interativo cujas manobras táticas consistem numa mudança rápida de comportamentos amplamente subtraídos ao nível verbal?" (p. 110).

Aonde leva o jogo sujo premeditado e aparentemente deliberado? A que preço?

O pai relutante em fazer terapia de família:
-O senhor precisa comparecer à terapia de família.
-Mas o médico disse que esquizofrenia não tem cura e eu não piso aí nem fudendo.
-A nossa perspectiva profissional tem uma opinião diferente sobre a cura da esquizofrenia e, para tratá-lo, precisamos que o senhor venha à clínica uma vez por semana, para terapia de família.
-A minha mulher vai, e minha filha também.
-Sem o senhor, é impossível.
-E se eu estivesse morto?
-Se fosse assim, nós elaboraríamos outra estratégia. Infelizmente, não é o caso.
-O psiquiatra disse que não tem cura e vocês são uns charlatões.

O curioso é que, se o menino estivesse com câncer, e um médico dissesse que não tem tratamento, e outro dissesse que sim, em qual dos médicos eles acreditariam?

"Por que diante do drama de um filho estragado e insuportável, freqüentemente recusam-se a realizar atos tão pequenos, coisa tão pouca? Mas eles sentem a prescrição [ou, em alguns casos, a própria terapia] exatamente como um tornado que corre o risco de desorganizar, de maneira imprevisível, o complicado equilíbrio dos relacionamentos deles" (p. 292)

Viuvez dos pais - luto - melancolia
                         - guerra de sucessão - psicose, anorexia, neurose grave

A instigação

Provocação dissimulada <---> raiva dissimulada

Nível triádico (triangulação edípica): alguém instiga outra pessoa contra uma terceira.
"A distinção entre instigações e instigado não existe mais. O instigado também é instigador, o instigador também é instigado, enquanto a terceira pessoa, que identificamos no papel do primeiro instigador, é obrigado a pagar penalidades muito pesadas" (p. 124).

provocação <---> raiva
             ^ instigação ^

Todo enredo da instigação e do imbroglio passa-se no não dito, como estratégias tácitas em relação às quais todos têm um papel mais ou menos definido, mas também superposto, interpolado.

Coalizão
A filha foi instigada pelo pai em direção ao sintoma contra a mãe (delinquênica, depressão)
"O primeiro deles é o caráter perverso da coalizão pai-filha, quase oculto, mas ativo a ponto de gerar na mãe um estado de angústia, como se ela fosse o alvo de alfinetadas que não sabia de onde vinham"(p. 132)

"Um outro comportamento típico das provocações ditas 'triunfalistas' é elas apresentarem, com freqüência, fases de desencorajamento. Nesses momentos, o cônjuge invejoso, para não deixar que percebam sua inveja, sente-se obrigado a ajudar o provocador a 'recarregar suas baterias'!"

"Pelo fato de ocorrer exclusivamente nos binários no analógico, esse jogo pareceria, em grande parte, nada ter a ver com a intencionalidade ou com o controle 'racional' dos jogadores" (p. 133)

O filho se vê em um contrato que não assinou:
-Não poderíamos todos jogar pique-pega?
Se houvesse uma promessa percebida de sucessão à mãe, que fosse quebrada, o filho poderia descompensar, na criação de um delírio onde isso é possível.

O fato de termos salientado a importância do "fenômeno que chamamos instigação e insistir no fato de que termos configurado esse fenômeno, termos suspeitado corretamente da sua presença oculta, e possuirmos uma estratégia capaz de identificá-lo precocemente e eliminá-lo pode constituir um grande instrumento de prevenção" (p. 135).

Instigação nas psicoses
Entender que as reticências não nascem da vontade de criar obstáculos para os terapeutas de família, e sim do próprio espírito do jogo do casal: ou seja, da convicção, alimentada pelos pais, de que é necessário impedir que o adversário veja suas cartas.
-- procurar no jogo do casal as raízes da raiva do filho: mero portador de mensagens de terceiros, de coisas que os outros não têm coragem de falar e sobre cuja natureza o próprio filho não consegue explicar sozinho, e diante das quais ele se estupefata, enlouquece.

"Por que seu marido tinha tanta dificuldade assim para conversar diretamente ou para dizer-lhes coisas do tipo 'se você não chegar às sete lhe dou um murro na boca'? Sabe que uma pessoa que não consegue falar tem dentro dela um vulcão?... E é por isso que existem outras pessoas que captam esse vulcão e decidem que elas é que vão transmitir a mensagem!" (p. 141)

Quanto ao jogo do casal, "o que se percebe, cada vez com mais destaque, como fenômeno recorrente, é a história de 'nunca dar-se por vencido'" (p. 142)

Jogo do casal genitoral
A ameaça costuma ter o sexo como espantalho: as ameaças podem comportar a nomeação de um rival erótico interno, habitualmente um filho ou filha, que vem anteposto ao parceiro.

Enredamento do filho, o paciente identificado, no jogo do casal.

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Em lugar do pensar sistêmico (cibernético), surge a metáfora do jogo enquanto fenômeno humano. "A família é uma microorganização baseada na cooperação para fins comuns. A negociação das modalidades dessa cooperação, por causa do fisiológico egocentrismo de cada sujeito, comporta necessariamente o nascimento de conflitos" (p. 187)

O jogo familiar não é brincadeira. Não jogar é impossível.


Um jogo é o produto das intervenções alternadas de cada jogador que, motivado a ganhar, dentro de regras explícitas consensualmente aceitas, executa a toda hora a sua jogada, após a jogada adversária.

Assim também pensa o GIPSI - ficará fácil, assim, para psicanalistas também se utilizarem na metáfora do jogo (mito familiar?)

O jogo "transforma em caducas as tradicionais fronteiras entre as disciplinas sociais e leva, inevitavelmente, cada pesquisador a se aventurar em campos que, 'oficialmente', não são seus" (p. 189): família, instituição e sociedade.

A confusão a respeito das regras
Negociação ou comportamento aprendido por falta de negocioação?

Regra: o cavalo se move em L ---- repetições
           experts empatam

O casal empatado na família psicótica: estratégias se equilibram , não se trata de uma regra. Até o sintoma: cada elemento do sistema serve à manutenção dele.

Não há intencionalidade linear como em um jogo político.






1) Impasse do casal: o jogo tem causalidade ancestral. Não há crises francas, apenas um contínuo provocativo que não sai do lugar. O impasse faz parte do jogo e evita a ruptura do casal e da família.
"Em alguns casos, sim, tem-se a impressão de estar diante de dois inimigos, prisioneiros de um jogo que eles mesmos criaram sem saber, e já não são mais capazes nem de interromper nem de abandonar" (p. 201).

No jogo de truco, o pai tem um zap, a mãe tem um sete de copas, mas ninguém pede truco.

... Em jogo de marido e mulher, é o filho psicótico quem mete a colher.

2) Enredamento do filho no jogo do casal: o filho pode se incomodar com uma justiça, por perceber que já uma vítima - mas e se ele soubesse que a vítima também assinou o contrato? Promessas ambíguas e ambiguamente negadas: por mais que você seja legal, não troco seu pai por você, mas vou dizer que você é meu companheiro e dorme comigo na cama, só pra provocar seu pai. Não se trata da oferta, de fato, de uma relação incestuosa compensatória e sim um laço que visa exclusivamente o provocador ativo.

Duplo vínculo: "em certo momento foi falsificado o pressuposto básico sobre o qual ele construiu o seu próprio universo cognitivo e afetivo. Ele descobre o caráter instrumental da ligação que tinha com o seu suposto aliado" (p. 204)

A mãe sugere, muito angustiada, que somente o filho poderia pedir truco, é claro que ele ganharia, se tentasse, afinal, ele é "como se fosse" um sete de copas...

3) Comportamento inusitado do filho: semelhante a pródromos, o filho se comporta como o estranhamento gerado pelo envolvimento num jogo que "não faz sentido" e que não comunica senão ambiguidades, afetos invertidos e provocações implícitas.

O filho grita no ouvido do pai: truco!! E o pai responde: do que você tá falando, maluco?

4) Reviravolta do suposto aliado: o provocador ativo continua parecendo que ganhou, mas o passivo não se alia ao filho para destroná-lo; ao contrário, tudo se mantém do mesmo jeito, e o comportamento do filho não é suficiente para demover o impasse.

A mãe fica puta, porque não foi suficiente para o pai sair do jogo - e nem ela queria isso de verdade. O filho entende a trapaça e se sente traído.

5) Explosão da psicose: o filho envolvido é abandonado. "A confusão psicótica é comparável à obscura sensação de que as cartas na mesa foram manipuladas, que os fundamentos lógicos do mundo e de seus significados foram revirados pelo avesso, visto que as previsões que se considerava certas demonstraram estar erradas" (p. 209). Aliar-se ao pai "fraco" era a própria base da percepção do mundo: confusão que desorganiza (psicose).

Despossuído de qualquer carta, ele sabe que o jogo é sujo e não pode fazer nada além de criar, narcisicamente, uma realidade em que as coisas façam sentido.

6) Estratégias baseadas no sintoma: o sintoma do filho foi criado dentro do jogo e tem por objetivo mantê-lo. Ele tem um poder patológico e "cada membro da família organiza sua própria estratégia em torno do sintoma do filho, que tem o efeito pragmático de mantê-lo" (p. 210).

Não é a negligência paterna per se que influencia ou determina a psicose infantil, já que a criança é um sujeito ativo no jogo dos pais.
"O filho, prova do fracasso existencial da esposa-mãe, não está investido do real afeto do pai, que não consegue ver nele qualquer outra coisa que não o aborto educativo da mulher. O filho fica sendo o 'pobrezinho' de quem nada se pode exigir" (p. 227) e não é "de ninguém".


Instrumental terapêutico

Tentativas conscientes de explicitação e revelação do jogo familiar (instrumental e clínico).
-Estilo intensamente emocional das sessões: deixar as banalidades burocráticas e enfocar nas estratégias, regras, coalizões, instigações e provocações.

Busca das pistas (diferenças ou peculiaridades) em um método circular entre os membros da família.

Investigar, na especificidade da família, qual o tipo de impasse/instigação/imbroglio que desembocou no delírio/alucinação/paranoia?

O terapeuta é o especialista, pode emitir um julgamento tecnicamente fundado.
No entanto, deve evitar ser ele também enredado no jogo da família (evitar quedas-de-braço), afinal é a família quem mais sabe sobre si própria.

A família pode se tornar reticente (resistente?):-
-falta de motivação,
-encobrimento do jogo familiar,
-autodefesas individuais.

O terapeuta pode:
-estimular um relacionamento aberto e empático,
-ser o primeiro a "por as cartas na mesa",
-favorecer adaptações realistas ao nível do que é possível para a família naquele momento.

Competição?

Dados sobre o impasse do casal
Dados sobre o enredamento do filho
----revelação do jogo (momentos descontínuos de iluminação)

O objetivo da terapia é, de modo geral,
"Esclarecer, de maneira detalhada e específica, de que modo e até que ponto o paciente se envolveu nos problemas de relacionamento do casal genitoral. Como ele construiu uma leitura desses problemas. Como, em decorrência dessa leitura, tomou partido do pai que considerava perdedor, identificando-se com ele. Como, em seguida, entrou ativamente no jogo, ou para resgatar o perdedor ou para induzi-lo a associar-se com ele no desafio ao pai que (em sua opinião) estava prevaricando. E como, no final, esse envolvimento ativo revelou-se um fracasso total: inútil para o relacionamento do casal e catastrófico para ele" (p. 265).

Modelo sincrônico de lidar com o impasse: enfoque na transferência. O empasse não é infinito - é preciso desconstruir a suposta oposição simétrica dos pais.

O casal é promovido a co-terapeutas do filho e, ao fazê-lo, movem-no a curar a si próprio.

Conotação positiva: há algo positivo no comportamento de todos os membros da família.
Pacientização dos pais: trazer à tona seus conflitos e a necessidade que eles têm de ajuda.
Prescrição invariável: equilíbrio entre culpabilização (responsabilização) e valorização dos pais.
-os pais foram manipulados pelos seus próprios pais, e isso "deformou" suas personalidades.
-a instigação é transgeracional
-o paciente identificado tem um papel ativo estúpido entre eles e deve ser demovido dele.
Autoterapia do casal: a terapia sugere a construção de um metajogo (um outro jogo, só que menos sujo) com regras mais explícitas e desconstrução das ambiguidades e traições percebidas.

A confiança no terapeuta pode abrir a porta trancada do impasse do casal (desde que ele bata à porta educada, mas confiantemente).

"O terapeuta assume que qualquer comportamento é 'compreensível' sob o perfil interativo, na base de um conhecimento suficiente do contexto no qual o sintoma foi produzido. Diante de comportamentos que parecem incompreensíveis [, como os comportamentos psicóticos,] há um único movimento coerente com tal assunto: aprofundar a investigação sobre o contexto interativo" (p. 288).




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